1.1 O CONTRATO DE TRABALHO COMO FONTE ORIGINÁRIA DE OBRIGAÇÕES
O contrato individual de trabalho ajustado entre empregado e empregador gera direitos e obrigações recíprocos, conforme a natureza do vínculo empregatício e as cláusulas essenciais e acessórias pactuadas no ato da sua celebração.
Apesar de o direito do trabalho disponibilizar um sistema normativo de regras que tutelam a força trabalhadora, sejam elas advindas do Estado ou de fontes autônomas, como as convenções coletivas de trabalho e os acordos coletivos, não há como desconsiderar a existência do poder diretivo do empregador traduzido nas tarefas de organizar, fiscalizar e disciplinar os seus empregados.
A legitimidade do poder diretivo repousa no artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ao atrair para quem contrata – pessoa física ou jurídica – a direção da atividade econômica com os riscos inerentes ao próprio negócio.
Em contrapartida ao poder diretivo do empregador, tem-se a subordinação jurídica do empregado, legitimada no artigo 3º do mesmo diploma legal.
O instituto da subordinação na relação trabalhista fortalece o poder de comando do empregador, que poderá, conforme o caso, aplicar sanções disciplinares. Essas sanções possuem um caráter educativo e/ou preventivo da manutenção do vínculo empregatício, podendo chegar ao extremo da extinção motivada do contrato individual do trabalho, a depender da gravidade ou do conjunto de atos faltosos praticados pelo empregado.
Da mesma forma, quando o empregador não cumpre com suas obrigações contratuais ou legais e, inclusive, pratica atos que denigrem a dignidade do trabalhador ou até mesmo a sua segurança física, há a rescisão indireta do contrato de trabalho por iniciativa do empregado.
Quando empregado e empregador pactuam a formação de um vínculo jurídico trabalhista, não importa se de forma verbal ou por escrito (art. 442 da CLT), nasce e se desenvolve entre eles um conjunto de direitos e obrigações.
Como primeira fonte de direitos e obrigações na relação de emprego, cita-se o próprio contrato individual de trabalho, instrumento que registra as cláusulas essenciais que caracterizam a natureza do vínculo empregatício formado, a saber: a natureza da atividade preponderante do empregador e seu enquadramento comercial; o local da prestação dos serviços; a função contratada; a carga horária contratada; o salário ajustado e o horário de trabalho. Outras cláusulas também poderão ser estabelecidas: regras de disciplina; produtividade; prorrogação e compensação da jornada de trabalho; questões salariais; deveres e responsabilidades etc.
O contrato individual de trabalho deve respeitar os limites estabelecidos no artigo 444 da CLT, na forma ali prevista: “As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, às convenções coletivas que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.”.
Essas limitações se devem à finalidade primeira do direito do trabalho que é proteger a saúde e a vida do trabalhador, proporcionando, por meio de normas legais, a efetivação das garantias trabalhistas de forma imperativa e irrenunciável.
O princípio da autonomia da vontade individual disposto no artigo 444 da CLT, embora limitado no que respeita às condições mínimas estabelecidas em lei, convenções coletivas e sentenças normativas, “subsiste no contrato de trabalho, seja, necessariamente, na formação do contrato, que é um acordo de vontades, seja na estipulação de seu conteúdo quando este for além do mínimo legal”[1].
Com relação às obrigações contratuais especificamente, pode-se afirmar que a obrigação principal do empregador é remunerar o empregado pelos serviços que foram contratados no ato da admissão, cujo valor pactuado já tinha sido pré-ajustado, além, é evidente, de oferecer trabalho e de proporcionar condições de higiene e segurança. Em contrapartida, o empregado teria a obrigação principal de desempenhar a atividade pactuada, além dos deveres de obediência, diligência e fidelidade para com a pessoa do empregador e com o seu empreendimento.
Em complementação, é oportuno apresentar um esquema prático das obrigações contratuais do empregador e do empregado, consoante a classificação adotada por Camino[2].
Obrigações do empregado
Principal – Prestação do trabalho contratado.
Acessórias – Dever de obediência; fidelidade; assiduidade e pontualidade; dever de urbanidade; dever de colaboração; dever de lealdade e não concorrência; dever de confidencialidade.
Obrigações do empregador
Principal – Contraprestação do trabalho contratado.
Acessórias – Dever de cumprimento das normas de caráter mínimo ao trabalhador previstas na Constituição Federal; dever de não discriminar; dever de dar trabalho; dever de fornecer os instrumentos necessários à prestação do trabalho; dever de propiciar condições adequadas de higiene, segurança e conforto no trabalho; dever de urbanidade; dever de proteção; dever de proteger os direitos de personalidade do empregado.
Evidentemente, além das obrigações contratuais apresentadas, sejam elas de caráter principal ou acessória, a boa-fé entre os agentes do contrato estará sempre presente como sustentáculo da relação trabalhista formada.
A boa-fé deve ser considerada tanto pelo empregado como pelo empregador na aplicação dos direitos e obrigações assumidos em consequência do contrato individual de trabalho.[3]
Boa-fé, de maneira geral, significa “um modo de agir, um estilo de conduta, uma forma de proceder, diante das mil e uma emergências da vida quotidiana, que não se pode ater nem se limitar à forma de cumprimento de certas obrigações. E que, quanto mais importante é a obrigação e maior o tempo que ela demande, maior será a importância prática do princípio”[4].
Em se tratando de relação de trabalho, a importância do valor “boa-fé” deve “centralizar-se na obrigação, de um lado, de prestar os serviços e, de outro, de pagar-lhe [ao trabalhador] a retribuição correspondente, já que, a propósito do cumprimento dessas duas obrigações básicas, é onde surgem mais ocasiões para violar o princípio”[5].
Dessa maneira, “é absolutamente indispensável para a vida de qualquer contrato – como para o bom convívio entre quaisquer pessoas – que exista boa-fé, exista fidelidade às palavras que expressam a vontade” [6].
Ademais, “o suporte psicológico e moral da relação de emprego é a confiança recíproca entre o empresário e o trabalhador. Sem esse minimum de convicção sobre a idoneidade do outro contratante e de seu intento sadio de cumprir as obrigações assumidas, a relação de emprego é insustentável”[7].
A boa-fé deve, portanto, ser preservada pelas partes contratantes para assegurar o desenvolvimento do contrato individual de trabalho. Inclusive, é em face dessa particularidade que se defende que a quebra da confiança é um fator determinante na decisão de aplicação da justa causa, seja decorrente de atos faltosos do empregado, seja por força de procedimentos irregulares de iniciativa do empregador.
O dever de boa-fé dos sujeitos do contrato individual de trabalho será, então, o sustentáculo da própria existência do vínculo empregatício, de forma que cada sujeito se responsabilize pelas obrigações assumidas no ato de formalização do vínculo empregatício.
Os julgamentos a seguir colacionados objetivamente sentenciam que a quebra da fidúcia macula a continuação do vínculo empregatício e justifica, conforme a gravidade da falta praticada pelo empregado, a aplicação da rescisão motivada do contrato de trabalho pelo empregador.
A jurisprudência trabalhista consolida esse pensamento, como se infere nos excertos do seguinte julgado: QUEBRA DE FIDÚCIA – DISPENSA POR JUSTA CAUSA – VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE – DESCARACTERIZAÇÃO – O contrato de trabalho é documento solene, em que as partes se obrigam mutuamente ao cumprimento de inúmeros deveres e obrigações, sendo que estas derivam precipuamente de lei, de norma coletiva e do próprio contrato firmado entre as partes. A violação, pelo empregado, dos deveres que lhes são acometidos pode redundar na rescisão contratual por justa causa. Não há que se falar em ato desproporcional do empregador quando verificada a quebra de fidúcia por parte do empregado, inviabilizando a continuidade da relação empregatícia. 2- Recurso conhecido e não provido. (BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho. 10ª Região. RO 00842-2008-003-10-00-1 – 2ª T. Relator Juiz Gilberto Augusto Leitão Martins. Brasília, DF. Julgado em 18.02.2009. Juris Síntese. São Paulo, Síntese, n. 92, nov./dez. 2011. DVD.)
QUEBRA DA FIDÚCIA – ATO DE IMPROBIDADE – JUSTA CAUSA – CONFIGURAÇÃO – Dentre as obrigações do empregado está o dever de fidelidade, expresso por meio da boa-fé-lealdade, descrita por Plá Rodrigues como a ‘conduta da pessoa que considera cumprir realmente com seu dever. Pressupõe uma posição de honestidade e honradez no comércio jurídico, porquanto implícita a plena consciência de não enganar, não prejudicar, nem causar danos. Mais ainda: implica a convicção de que as transações são cumpridas normalmente, sem trapaças, sem abusos e sem desvirtuamentos’ (in Princípios de direito do trabalho. 3ª ed. atual., 2ª tiragem. São Paulo: LTr, 2002, p. 425). Se o trabalhador, sem a autorização do empregador, deposita em sua conta bancária cheque emitido por cliente, pratica ato de improbidade, grave o suficiente para autorizar a rescisão contratual por justa causa. (BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho. 10ª Região. RO 00515-2006-007-10-00-3 – 1ª T. Relator Juiz Pedro Luis Vicentin Foltran. Brasília, DF. Julgado em 14.01.2009. Juris Síntese. São Paulo, Síntese, n. 92, nov./dez. 2011. DVD).
Outras fontes poderão gerar obrigações às partes contratantes, como normas advindas de lei, convenções coletivas, acordos coletivos de trabalho e normas regulamentares, os quais serão aplicados na averiguação do fato gerador da justa causa.
A doutrina classifica as fontes do direito do trabalho em materiais e formais. As fontes materiais se evidenciam em “momento pré-jurídico (portanto, o momento anterior à existência do fenômeno pleno da regra)” e designam “os fatores que conduzem à emergência e construção da regra de Direito”[8]. As fontes formais se evidenciam em “momento tipicamente jurídico (portanto, considerando-se a regra já plenamente construída), a mesma expressão designa os mecanismos exteriores e estilizados pelos quais essas regras se revelam para o mundo exterior”[9].
Dessa lição, extrai-se que as fontes formais espelham, por meio dos textos normativos, a essência das fontes materiais. E, como no sistema normativo do direito do trabalho há uma multinormatividade de normas, em um critério não hierárquico cuja harmonização se justifica pela aplicação da norma mais favorável ao empregado, torna-se necessária a subdivisão das fontes formais em heterônomas e autônomas, que têm os seguintes significados: heterônomas seriam as fontes formais produzidas pela estrutura estatal cujas normas trabalhistas poderiam advir do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou até mesmo do Poder Judiciário; autônomas seriam aquelas fontes decorrentes do exercício da autonomia privada, concedido por lei às entidades sindicais e ao empregador.
De todo modo, não podemos olvidar que o referencial inicial do sistema jurídico é a lei fundamental, “assim intitulada por conta de sua qualidade de pressuposto e de norma suprema”[10]. Portanto, no sistema normativo trabalhista, estariam abaixo da Constituição Federal todas as demais fontes formais independentemente da sua origem.
A seguir, apresentamos um novo esquema prático das fontes[11] que normatizam o conjunto de direitos e obrigações existentes na relação jurídica estabelecida entre empregado e empregador.
· Fontes formais heterônomas advindas do Poder Legislativo = Constituição Federal; emendas constitucionais; leis complementares; leis ordinárias; decretos legislativos; Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) com os novos artigos advindos da Reforma Trabalhista (Lei n.13.467/2017)
· Fontes formais heterônomas advindas do Poder Executivo = Portarias do Ministério do Trabalho com referência à legislação trabalhista; medidas provisórias; decretos; leis delegadas.
· Fontes formais heterônomas advindas do Poder Judiciário = Enunciados de súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal (art. 103-A da CF); sentenças normativas.
· Fontes formais autônomas advindas das entidades sindicais = Convenção Coletiva de Trabalho e Acordo Coletivo de Trabalho.
· Fontes formais autônomas advindas do empregador = fontes empresariais = Contrato Individual de Trabalho; regulamento interno; circulares etc.
O contrato individual de trabalho é a fonte originária das obrigações trabalhistas que se firmam entre os sujeitos da relação de emprego. Para bem compreender o instituto da justa causa, antes, é necessário conhecer as cláusulas principais e acessórias próprias do pacto laboral.
Alexandra da Silva Candemil – OAB/SC 9.095
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[1] MARANHÃO, Délio. Instituições de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2001. v.1. p. 254.
[2] CAMINO, Carmem. Direito individual do trabalho. Porto Alegre: Síntese, 2004. p. 325-339.
[3] RODRIGUEZ, Américo Pla. Princípios de direito do trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr, 2000. p. 428.
[4] RODRIGUEZ, Américo Pla. Princípios de direito do trabalho, 3. ed., p. 428.
[5] RODRIGUEZ, Américo Pla. Princípios de direito do trabalho, 3. ed., p. 428.
[6] PRUNES, José Luiz Ferreira. Justa causa e despedida indireta. Curitiba: Juruá, 1995. p. 105.
[7] RUSSOMANO. Mozart Victor. Curso de direito do trabalho. Curitiba: Juruá, 2002. p. 186.
[8] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 16. ed. rev. e ampl. São Paulo: LTr, 2017. p. 146.
[9] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho, 16. ed., p. 150.
[10] MARTINEZ, Luciano. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 60.
[11] MARTINEZ, Luciano. Curso de direito do trabalho, p. 52-60.